Essa semana, vamos relembrar que a pluralidade e as questões étnico-raciais e indígenas foram destaque na programação da SBPC Afro e Indígena
Deriky Pereira
Mais de três mil e trezentas pessoas. Esse foi o público estimado pela comissão organizadora e que participou das 104 atividades oferecidas pela SBPC Afro e Indígena na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Num dos eventos mais plurais que a 70ª Reunião Anual da SBPC apresentou, o público teve a oportunidade de conhecer e acompanhar um misto de artes, história, ancestralidade e cultura dentro do maior evento científico da América Latina.
E uma das variadas atividades de destaque do evento foi a Oficina de Tranças ministrada pela jornalista e trancista, Emanuele Divino. Num dos momentos, ela enfatizou a importância da resistência e declarou que é preciso parar com isso de dizer ‘quem pode ou não’ utilizar tranças: “Quando é para falar sobre tranças e identidade negra, de fato, me sinto em casa. Poder falar o quanto as tranças fizeram uma transformação em minha vida é algo mais que satisfatório e posso ate mesmo afirmar que é um dever social meu, de minha cultura, de meu povo. Trazer para o meio acadêmico a vivência e história dos indígenas também foi algo ao qual acredito fortalecer origens, resgate de culturas e mostrar que os mesmos permanecem vivos e na luta por sua resistência e sobrevivência, e assim como o povo negro, sem deixar-se atingir por intolerantes de nossa sociedade”, refletiu.
Os ouvintes também ficaram atentos enquanto a jornalista narrava histórias vivenciadas por ela que, ao longo de seus 29 anos, revelou ter sempre utilizado os cabelos de sem qualquer tipo de química. “Eu nunca alisei, eles sempre foram assim naturais ou trançados. As perguntas mais comuns e recorrentes por clientes ou até mesmo de curiosos é de que quem usa tranças precisa ter o cabelo ruim? Mas, o que seria um cabelo ruim? Bom… Meu cabelo é crespo, eu fui crescendo e me vendo como negra que vi que ele não é ruim, não me faz mal e nem tão pouco fala mal de ninguém”, disse.
E um desses relatos fez com que Emanuele refletisse, inclusive, sobre o seu lugar na sociedade: “Certa vez fiz algo ao qual não faço mais: retirei minhas tranças e prendi meus cabelos em forma de coque para ir a uma possível entrevista de emprego. Me senti nua, ultrajada, ferida. É como se eu vestisse algo ao qual não me pertencia. Enfim… Nem emprego ou mesmo uma resposta da tal entrevista, a qual mal me olhou nos olhos e nem sequer durou cinco minutos. No outro dia, recoloquei minhas tranças e disse a mim mesma que não me sujeitaria mais àquela situação a qual tanto me feriu. E não só por essa situação enquanto negra, entre outras ao longo da minha vida, é que luto e brigo pelo meu lugar de fala, até mesmo sem esperar ouvir de alguns durante o evento que eu era referência força para muitos, e isso só me fortalece.”
Uma das ouvintes e participantes foi a estudante de Educação Física da Ufal, Línia Nascimento. À época aos 19 anos, ela declarou que participar foi importante para reafirmar o processo de transição capilar que ela vem passando. “Acho que a oficina foi mais uma inspiração para mim, para não desistir. Foi como a palestrante falou, que já sofreu muitos preconceitos e a gente sabe que, na nossa sociedade, existe muito preconceito com negro ainda. Tem muita gente que, desde pequena faz alisamento, e eu, inclusive, mas agora eu resolvi mudar, por mim, para eu me descobrir. E eu quero ser eu mesma”, apontou.
Aceitar-se é importante!
A transição capilar é um período no qual a mulher ou o homem decide não realizar mais procedimentos com química, abandonando alisamentos e demais tratamentos nos cabelos para, assim, exibir os fios em sua forma original. Línia declarou que já passou duas vezes pelo processo – na primeira, desistiu por pressão psicológica – mas decidiu retomar e confessou: não foi fácil, principalmente, por conta do preconceito que vivenciou.
“Na primeira desisti por pressão psicológica e até de algumas pessoas que diziam: não vai combinar, ah, é feio. Até na família mesmo me diziam: tem certeza que você quer mesmo ficar com cabelo assim? Como se fosse um cabelo feio, que não combinasse comigo. Mas, se Deus me fez assim, por que eu não vou combinar? Essa sou eu! Foi aí que acabei me dizendo: agora vai ser sério, não vou ligar, eu sei o que eu quero e não vou ligar para a opinião das pessoas”, refletiu Línia Nascimento.
Para uns, dar o ponto de partida em algo que incomoda pode ser algo fácil; já para outros, a situação é um pouco mais complicada. O importante e o que você deve perceber, acima de tudo e que pode ajudar na sua tomada de decisão, é reconhecer-se e aceitar-se como é sem pressões: tudo ao seu tempo, afinal só você vai poder dizer a você mesmo que o momento, enfim, chegou!
“A sociedade muitas vezes faz a gente colocar na cabeça que não somos aceitos, que não devemos fazer isso ou aquilo, mas somos sim, devemos nos redescobrir, voltar às origens e não ligar para o que as pessoas falam. Isso não ajuda! Isso é um problema da sociedade e na sociedade. Acho que quando a gente é pequena, os pais não fazem assim: olha, você é negro e vai ter que se aceitar do jeito que você é. Às vezes não é assim que acontece. Mas eu acho que a gente tem que estar aqui para ver e gostar da gente como a gente é”, disse Línia Nascimento.
A fala da estudante foi reforçada por Emanuele Divino. Para ela, o apoio dos pais é de extrema importância na constituição do ser de cada um. “Como experiência, posso falar de mim mesma. Tive uma ótima criação e, do ponto de vista de se ver e aceitar como criança negra, isso me facilitou a identificação de quem eu sou na sociedade. Quando minha mãe trançava os cabelos e sempre me dizia que no mundo tem todo tipo de pessoas, não apenas na estética visual, mas também pessoas boas e más, entre demais características”, disse.
Emanuele também alertou sobre o quão importante é ter a compreensão da família em casos de aceitação. “É em casa onde aprendemos os valores primordiais da sociedade, o respeito e a individualidade de cada um. Educar é dar formação e informação a outro ser e, mesmo carregando os valores e condutas de seus pais, esses mesmos pais precisam enxergar essa individualidade de cada um, aceitar, respeitar. Já que o mundo fora de casa já e tão hostil, o nosso lar deve ser o nosso refúgio, não prisão.”
“É preciso discutir esses assuntos na Universidade”
Ao refletir sobre os temas postos em discussão e dos eventos realizados durante toda a semana, quem participou da 70ª Reunião Anual da SBPC – e especialmente da programação da SBPC Afro e Indígena realizada nos campi A.C. Simões, em Maceió, Arapiraca e do Sertão, concluiu que o assunto precisa ser cada vez mais discutido no âmbito da academia.
Para a estudante de Ciências Sociais da Ufal, Júlia Góes [foto, ao lado, sentada na cadeira], “a discussão sobre o assunto na Universidade é muito importante para, além de conhecer um pouco mais da nossa história, reconhecer-se como negra faz parte desse processo. Ainda tem muito estereotipo de quem é negro, por isso, precisamos falar, sim, sobre o assunto na Universidade”, refletiu.
Já Línia considerou que este foi um dos eventos mais importantes dos quais ela já participou. “Foi um tema essencial. Acho que a sociedade toda vai saber: não, é agora, eles sabem o que querem e as pessoas podem se sentir apoiadas. Tem muita gente que desiste da transição e acaba se escondendo. E esse evento aqui foi uma forma de dizer: estamos aqui, vamos fazer e não importa o que a sociedade vai dizer”, disse ela.
Emanuele aproveitou e agradeceu ao convite, destacando que toda a SBPC Afro e Indígena teve importante troca de experiências entre os participantes. “Fiquei feliz pela oportunidade de repassar o meu conhecimento não apenas com as tranças, mas também enquanto mulher negra, criada numa periferia e que hoje é formada em Jornalismo pela mesma instituição, a Ufal. Sempre engrandeço a Universidade partindo do ponto de vista das oportunidades oferecidas aos que nela estão e aos demais. A SBPC veio mostrar e resgatar culturas, aproximar conhecimentos em forma de interação, atraindo pessoas do país inteiro, todos movidos pela tecnologia e por essa troca de experiências”, finalizou.
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