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Desigualdade de gênero na academia

No mês em que se comemora o dia internacional da mulher, a Fapeal convida pesquisadora que escreveu um artigo sobre a produtividade de homens e mulheres na academia

Tárcila Cabral

Celebrar o mês de março, data a qual se comemora o dia internacional da mulher, traz uma série de reflexões sobre como compreender a data, e distinguir se há de fato algo a ser enaltecido. Nesse contexto, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), que sempre se manteve atenta ao tema e suas discussões, convidou a professora de ciências sociais, Marina Félix, que produziu recentemente um artigo junto ao seu grupo de pesquisa abordando as diferentes produções entre homens e mulheres na academia.

Intitulado ‘Gênero e desigualdade na academia brasileira: uma análise a partir dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq’, o artigo é fruto de um Projeto de Iniciação Científica (Pibic) coordenado pela docente na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). De acordo com a estudiosa, inicialmente o projeto não visava adentrar na temática de gênero, mas acabou se voltando também a esta análise:

“Em 2015 eu comecei a me interessar por produção acadêmica, porque na época a gente estava inclusive mexendo com PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) porque iríamos submeter um doutorado em sociologia lá. Então algumas coisas em relação ao sistema Capes nós precisávamos entender e para isso a gente começou”, disse a doutora em sociologia. A professora aborda que já atuava em estudos com a sociedade civil e o terceiro setor há pelo menos dez anos, e pensou em mudar o tema de estudo porque entender a lógica da produção na academia era um ponto importante a ser analisado.

Foi com esta intenção que o assunto lhe chamou atenção, pois dava aulas de metodologia tanto qualitativa como quantitativa. Assim, em 2015, eles deram início a um Pibic sobre as teses de doutorado em Sociologia no Brasil. Partindo primeiro de uma análise com os pesquisadores de Produtividade em Pesquisa (PQ) da área de Sociologia, e depois sendo ampliado para se produzir uma pesquisa maior, o artigo de desigualdade na academia foi fruto desses trabalhos.

Na proposta mais especificamente dentro da área de Sociologia foi realizado um censo, pois segundo a docente o número era alto, entre 200 a 300 estudiosos. Assim os pesquisadores entravam no Lattes de todos estes acadêmicos e produziam um perfil de estudo para compreender como era a produção de um pesquisador com bolsa de produtividade PQ. O grupo realizou um recorte de três anos, porque naquele momento a avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) era trienal. Posteriormente, foram baixados os PDFs de todas as teses de Sociologia do país, o que a professora explica que reunia cerca de 290 trabalhos.

O objetivo geral era analisar o que havia de metodologia, mas o trabalho ganhou um impulso extra com a visita da Capes ao programa de pós-graduação de Sociologia da Ufal, pois eles mencionaram que havia um grupo na Universidade de São Paulo (USP) realizando um estudo similar e que poderia ser interessante a colaboração. A parceria motivou os estudiosos a unirem os objetos de pesquisa, além de acabar rendendo a publicação de um dossiê na Revista Brasileira de Sociologia (RBS), acerca das metodologias dos doutorados da área.

O trabalho repercutiu e as análises começaram a se direcionar para uma questão relevante: Essas metodologias têm alguma diferença de gênero? Logo, os estudiosos se voltaram aos próprios dados, onde poderiam analisar as teses e identificar através dos autores a produtividade feminina e masculina destes profissionais na pesquisa.

“A gente começou a perceber algumas coisas interessantes, porque as teses ditas como teóricas, aquelas mais abstratas, mais densas, eram mais escritas por homem, e os homens estavam mais localizados também nos programas de pós-graduação de nota mais alta. Quando a gente chegava aos programas de notas mais baixas, a gente começava a ver a parte mais equilibrada entre homens e mulheres, mas porque se equilibrava? Porque tinham mais homens estudantes na pós-graduação de sociologia, mas eles se centravam nos grupos de nota alta, então nos grupos de nota baixa não existiam muitas diferenças”, frisou a acadêmica.

Ela complementou citando que os programas de notas mais baixas, que eram localizados principalmente no Norte e Nordeste do país tinham uma força de construção, e o tipo de estudo realizado era mais empírico. Para além da equidade, existiam ainda as mulheres desenvolvendo um trabalho de ir a campo, fazer entrevistas, se deslocar até as escolas para observar como se portava a Sociologia da Educação, ou seja, estes trabalhos nos PPGs eram mais identificáveis entre as mulheres.

Em outro ponto da análise, uma das estudantes do Pibic, Selefe Gomes, começou a ler os agradecimentos das teses, que é o espaço mais livre de um trabalho acadêmico e algo bem subjetivo. Neste tópico a hipótese levantada pela aluna ao analisar os textos foi a de que, as mulheres que vão para o doutorado-sanduíche não agradecem a marido e filhos, mas muitos homens que vão ao mesmo doutorado agradecem a esposa e filhos. Logo, a teoria supõe que eles agradecem a oportunidade de terem conseguido realizar o sanduíche fora, pois se constata que esses homens tinham família e conseguiam sair do Brasil para se qualificar, enquanto que as mulheres na mesma condição não conseguiam ir.

A questão do gênero acabava sempre aparecendo em diversos pontos, levando Marina Félix e a equipe de estudo a fazer alguns testes estatísticos de diferença entre médias e as médias de produção. O grupo criou um índice de rendimento acadêmico e utilizou alguns baremas (tabelas de cálculo de dados) usados nas universidades, que abordam o que um professor deve desenvolver em termos de produção. Assim, foi construído um barema baseado em 20 variáveis, de modo que os pesquisadores apenas precisavam inserir os Lattes analisados para encontrarem índices de produção a serem analisados.

Com o desenrolar da investigação, e a partir do cruzamento dos dados, foi encontrada uma descoberta importante: Que mesmo em quantidade menor, no setor acadêmico, não existiam diferenças estatisticamente significativas entre as médias de produção de homens e mulheres. Mas porque é então que se têm menos mulheres na hierarquia dos quadros de pesquisa?

Félix explica que todo este complexo é permeado por relações de gênero e até por explorações de gênero. Como essas problemáticas estão enraizadas na estrutura societária é preciso estar aberto à compreensão e análise destas perspectivas. De acordo com a acadêmica, sabe-se que, ainda hoje, está posta uma sociedade machista, e não é porque ele é um objeto de estudo da universidade que não ocorra de fato nos campi.

Por outro lado, os dados apresentados no artigo de gênero e desigualdade revelaram igualmente um fator preocupante a temática: quais esforços excepcionais estão sendo realizados para que as mulheres, mesmo em menor quantidade, atinjam uma produção similar a dos homens? E aí se dá o estopim de uma problemática de gênero na academia, que vai se formar quando essas mulheres ingressam na universidade nos cursos de graduação e entram como maioria na base. Porém ao tentar ascender na comunidade científica elas se deparam com diversos empecilhos que as retém, fazendo com que esses percentuais diminuam.

“Tem uma carguinha maior, e aí essa carguinha quando a gente vai fazer os estudos qualitativos que a gente fez com entrevistas com recém-doutores em Sociologia, as pessoas estavam com três anos de doutorado e a gente ia lá entrevistar e viu do ponto de vista mais qualitativo coisas que não aparecem nos documentos: o adoecimento físico, o adoecimento mental, o vício em medicamentos, a ansiedade e sentimento de que não vai dar conta”, citou a estudiosa.

A equipe concluiu este artigo e enviou a publicação para Portugal, pensando em articular as informações e estudos junto à academia do país e até mesmo compreender se existiam complexos similares lá. A recepção da comunidade científica ao estudo foi muito benéfica, inclusive com os pareceres completos e substanciais. Além de Portugal, a pesquisa também foi enviada e bem recebida em Moçambique e Angola, e gerou outras repercussões positivas em solo nacional. A professora Marina Félix em conjunto com o professor Amurabi Oliveira concederam uma entrevista para a revista Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), outro espaço que deu dinamismo ao tema.

Problematização de um complexo estrutural

Professora Marina Félix

A coordenadora da pesquisa ressalta que é importante informar as mulheres pesquisadoras que elas possuem algumas alternativas legais para ampará-las, mas que somente elas não são suficientes para sanar um problema estrutural. Atualmente as cientistas dispõem de licença maternidade para as que contam com bolsas e estão em produtividade, mas existe um problema mais profundo. Segundo a estudiosa, esses complexos são questões estruturais que sustentam as diferenças de gênero, e estão muito além do começo de engatinhar políticas públicas.

“No currículo Lattes agora tem uma opção para você colocar o período de licenças, inclusive a licença maternidade. Mas depois desse período a produção da mulher vai estar sob a interferência do momento em que ela ficou de licença. Então será que lá frente ela também vai estar nesta condição? Vai, porque ela não está com a criança? E qual que é a compreensão dos cuidados de uma criança no Brasil? Mesmo no período da pandemia? É algo que é sobrecarregado na figura feminina”, frisa a docente.

Podem ser os filhos, pais doentes, afazeres domésticos, e uma série de demandas que se tornam encargo das mulheres, reforça Félix. A administração de tudo que se passa no ambiente doméstico e familiar é geralmente passada a um campo feminino.

Também foi abordado pela pesquisadora que alguns editais compreendem a licença maternidade e não consideram a produção, senão houver, nos últimos dois anos da mulher que teve filhos, e isto já demonstra um avanço num novo formato de repensar o rendimento da estudiosa. No entanto ela frisa que é preciso resolver os complexos sociais vivenciados hoje, como é o caso do machismo. Pois mesmo com as políticas de incentivo, sem esta resolutiva a mulher estará correndo sempre com uma carga maior.

Cuidado e empatia entre as mulheres

Por fim, a cientista social frisou que neste mês em que se comemora o dia internacional da mulher é essencial que elas se fortaleçam e cuidem umas das outras. A pesquisadora frisa que um olhar empático de quem está de fora pode auxiliar muitas a se cuidarem e se perceberem em todos os aspectos.

“Por que o problema que se vê na estrutura vai refletir numa mulher que está ao seu lado, e ela pode estar bem, estar feliz e realizada, mas às vezes não está consciente de todos os processos, porque é muito difícil a gente se olhar quando está dentro de si”, citou Félix.

Portanto a mensagem que ela deixa neste mês é de que as mulheres estendam os cuidados umas as outras, não tolerem atitudes e palavras que as machucam e que passem a problematizá-las. Qualquer reação realizada nas diversas esferas pode e deve ser repensada para ajudar o sistema a alterar essas estruturas.