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Pesquisadora esclarece diferença entre Cannabis medicinal e outros usos da maconha

A venda controlada de produtos à base de Cannabis começa em março de 2020, nas farmácias do Brasil

Naísia Xavier

Cannabis sativa

Maconha agora é remédio? Não exatamente. É importante começar esclarecendo que o cultivo da planta continua sendo crime no Brasil, bem como seu uso recreacional. O que a justiça brasileira liberou foi apenas a importação de insumos à base dos princípios ativos da planta, que poderão ser utilizados para a fabricação de produtos derivados de Cannabis.

A partir de 9 março de 2020, eles vão poder ser comercializados em farmácias, desde que prescritos por médicos e entregues por um farmacêutico no balcão, seguindo os mesmos trâmites de segurança utilizados para medicamentos controlados e com potencial para causar dependência, como exigência de identidade, endereço e assinatura do cliente, retenção da receita, tarja preta e, a depender, assinatura de um termo de responsabilidade sobre o conhecimento dos efeitos. Por fim, cada uma das vendas será cadastrada no Sistema Nacional para Gerenciamento de Produtos Controlados – SNGPC, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

De acordo com a regulamentação brasileira, os produtos à base de Cannabis não podem ser chamados de medicamento, embora seu uso se restrinja exclusivamente a fins terapêuticos. Está vedada a possibilidade de consegui-los em farmácias de manipulação e, devido ao seu potencial tóxico, pertencem a uma categoria completamente diferente dos fitoterápicos.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) convidou uma cientista parceira a esclarecer os pontos mais relevantes desse assunto para a população: Aline Fidelis é farmacêutica e doutora em Química e Biotecnologia. Ela coordena o Centro de Informações Toxicológicas da Universidade Federal de Alagoas (CITox Ufal), um programa de extensão ligado ao Grupo de Pesquisa em Toxicologia, do qual é líder. A conversa se ateve aos aspectos de competência das ciências biológicas, sem enveredar pelas outras questões inerentes à discussão da política sobre drogas do Estado brasileiro.

Aline Fidélis. Foto: Tárcila Cabral

A pesquisadora começa explicando que princípios ativos são as substâncias de uma planta que possuem efeitos biológicos no organismo de seres humanos e outros animais. No caso da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, estes princípios ativos se chamam canabinóides.

A cientista diz que, dentre aproximadamente 130 canabinóides identificados, há dois cujos efeitos se destacam, e que já foram isolados e testados clinicamente em seres humanos, sendo os mais promissores nas pesquisas médicas desenvolvidas até o momento. São eles o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC).

A liberação de compra e venda de produtos derivados de Cannabis no Brasil foi impulsionada principalmente devido ao potencial do canabidiol no tratamento de crises convulsivas, especialmente em casos mais raros de epilepsia, nos quais os pacientes demonstram resistência aos medicamentos normalmente prescritos.

O anti-herói

Já o THC é a substância mais presente na Cannabis sativa, e o principal responsável pelos efeitos psicotrópicos capazes de causar as alterações mentais, popularmente acessadas através do uso de cigarros ou da ingestão de produtos comestíveis. O THC é o canabinóide com maior potencial de causar dependência química e psicológica, além de possuir os efeitos colaterais mais indesejáveis, chegando a provocar até mesmo surtos psicóticos, em pessoas predispostas.

Planta tem mais de 100 princípios ativos

Por outro lado, “nós não podemos demonizar o THC”, analisa Aline Fidelis. “Ele tem muitas possibilidades terapêuticas: foi o primeiro canabinóide a ser estudado e já teve todo o seu potencial avaliado. É o principio ativo mais tóxico da Cannabis conhecido até hoje, mas ele também tem efeitos terapêuticos bem estudados, por exemplo, no tratamento da falta de apetite em casos de Aids ou das náuseas e vômitos em pacientes fazendo quimioterapia de câncer, no controle da pressão intraocular em casos de glaucoma e no tratamento complementar das dores neuropáticas em casos de esclerose múltipla”, comenta a pesquisadora. Dores neuropáticas são dores crônicas, a partir de nervos lesionados.

Interação

O uso do canabidiol, que é psicoativo mas não psicotrópico nem tóxico por si, só é indicado em casos extremos, ou seja, aqueles que não respondem às terapêuticas já clássicas e convencionais nos tratamentos para epilepsia. O THC pode estar presente nesses produtos.

E por quê? Aline Fidelis explica que, nos produtos à base do extrato de plantas, normalmente, há um sinergismo entre os princípios ativos, então um deles sozinho não necessariamente vai prover todo o efeito terapêutico.

“E muitas vezes, esses princípios ativos se complementam no mecanismo de ação, e consequentemente, no efeito. Então, o tetraidrocanabinol está presente porque ele está na planta, e porque ele é também importante para o efeito desejado”, esclarece a farmacêutica.

A regulamentação da Anvisa definiu que os produtos a base de Cannabis com menos de 0,2% de THC devem conter tarja preta e o informe de que só podem ser comercializados com retenção de receita, com atendimento de um profissional farmacêutico, e os produtos com mais de 0,2% de THC devem conter a tarja preta, mais toda a informação contida naqueles abaixo de 0,2% e, além disso tudo, uma informação clara de que é um produto passível de causar dependência.

É importante salientar que o uso da maconha, seja fumada, seja com vaporizadores ou outras manipulações, não vai causar os mesmo efeitos benéficos dos produtos derivados de Cannabis que estão sob a regulamentação brasileira, ou que já são utilizados em outros países.

“É uma terapêutica bem controlada e isso é importante para garantir a segurança da população”, informa a pesquisadora. A forma de uso recreacional não está relacionada com o uso terapêutico”, resume. Ao mesmo tempo, enquanto  cientista, ela comemora as possibilidades abertas pela regulamentação no Brasil:

“É possível pesquisar modificações na estrutura da molécula para diminuir os efeitos tóxicos. Então, as possibilidades terapêuticas estão abertas para os grupos de pesquisa avançarem seus estudos.  Acredito que nós, daqui para frente, teremos um bom desenvolvimento envolvendo  Cannabis”, conclui.

Perspectivas Abertas

A Anvisa já decidiu que a regulamentação no Brasil deverá ser revisada em até três anos, justamente em razão do estágio técnico-científico em que se encontram os produtos à base de Cannabis mundialmente. De acordo com a Agência Nacional, as empresas brasileiras devem continuar com suas estratégias de pesquisa para comprovação de eficácia e segurança de suas formulações, pois pelo atual conhecimento, estamos diante de uma situação em transição regulatória.

Levando em conta os rumos usuais do desenvolvimento tecnológico a perspectiva é que os produtos derivados de Cannabis venham a seguir as mesmas etapas e regras utilizadas na busca de um novo medicamento.

Para saber mais sobre os produtos tóxicos regulamentados no Brasil, siga o perfil de redes sociais do CITox, em @citoxufal.