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Perspectivas de mulheres na ciência

“Perspectivas de mulheres na ciência” é uma campanha desenvolvida pela Fapeal para o mês de março, com o objetivo de homenagear cientistas que têm feito a diferença não somente no cenário de gênero, mas no contexto social. Ildney Cavalcanti é a terceira personagem desta campanha. Esta semana disponibilizamos uma entrevista exclusiva trazendo aspectos relevantes da pesquisador@ no contexto de gênero.

Ildney Cavalcanti é formada em Letras português e inglês, tem doutorado em English Studies, pela University of Strathclyde, é professora e pesquisadora da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Atua no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística, vinculado à Fale e coordena o grupo de pesquisa Literatura e Utopia. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Estudos de Gênero. Suas pesquisas envolvem histórias de gênero na ciência e ficção, estudos críticos da utopia em questões de gênero e as perspectivas queer, protagonismos femininos na literatura, entre outras temáticas.

Para conhecer a trajetória de outras pesquisadoras ilustres não deixe de acessar a campanha “Perspectivas de mulheres na ciência” nas nossas redes sociais.

1-  Porque é relevante escrever e disseminar histórias que debatem gênero em nossa sociedade?

Pensando de forma bem ampla, as histórias somos nós. Dizemos quem e o que somos, falamos de nossas identidades por meio de narrativas, ou seja, de histórias. E nos espelhamos, ou não, nas histórias que ouvimos, lemos e às quais assistimos. Por isso, devemos aguçar nossas percepções sobre quais histórias têm circulado e sobre, como tão bem nos lembra a autora africana Chimamanda Adichie, os perigos da história única. De modo geral, nas narrativas que nos cercam diariamente, predominam imagens em que as relações de gênero seguem uma lógica heterossexista, classista e excludente. Nelas, os enredos mais tradicionais ainda são os mais populares: estruturam-se em torno do eixo homem-sujeito/mulher-objeto, conforme cristalizados, por exemplo, pela maior parte dos contos de fadas clássicos, como o da bela adormecida, epítome da passividade. Sendo mulher, feminista e estudiosa da literatura, tenho ao redor um universo imenso de possibilidades de exploração, um vastíssimo campo de estudo, tanto na direção do resgate de histórias que, por suas inovações no tocante às relações de gênero, foram apagadas da história literária oficial – trata-se de um tipo de arqueologia em busca das narrativas (quase) perdidas, por que foram negligenciadas e quase completamente suprimidas pela cultura –, quanto no sentido de lermos, mapearmos e disseminarmos, na contemporaneidade, histórias que rompem com os paradigmas reducionistas de gênero. Tenho me debruçado mais sobre estas últimas e tomo a liberdade de sugerir, para quem ainda não o fez, a leitura de O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, uma distopia centrada nas questões de gênero que tem me fascinado desde a sua publicação nos anos 1980. Significativamente, esta obra ressurge com toda força no atual contexto retrógrado que temos vivido no Brasil e no mundo.

2-  Qual a importância do protagonismo feminino na literatura?

A questão da visibilidade é importantíssima, mas lembremos que nem todo protagonismo é sinônimo de uma ideia ou significado positivo em se tratando das relações de gênero. Como tudo na vida, e principalmente em pesquisa, é preciso relativizar sempre, seja o que for. Assim, voltemos ao exemplo que dei acima sobre os contos de fadas: em se tratando do protagonismo feminino de uma história infantil como a contada na animação Brave (2012, Valente), em que temos a princesa Merida, ou aquele de um filme de ação como Mad Max – Fury Road (2015), com a personagem Furiosa, é sim, de extrema relevância termos figurações de mulheres fortes que, sem dependerem de um herói ou príncipe, lutam por seus ideais, desbravam seus próprios caminhos, decidem sobre seus próprios destinos. São, muito evidentemente, modelos positivos a nos inspirar. Não esqueçamos, porém, que há também vários outros tipos de protagonismo feminino e, dentre estes, alguns que repetem os enredos do patriarcado, com mulheres fortes que reafirmam a ordem binária e opressora que desejamos desmantelar. A literatura e a cultura estão povoadas por mulheres protagonistas fortes e decididas, que atuam na manutenção do status quo. E que, nem por isso, deixam de ser fascinantes. Pensemos em Bernarda Alba, de Garcia Lorca, matriarca poderosíssima, como uma personagem desta família… Assim, importa mais a leitura crítica que fazemos dessas mulheres do que o fato do protagonismo em si. Dito isso, vale lembrar sempre que as figurações “negativas” de mulheres – e até mesmo o seu não-protagonismo – também podem acionar posturas críticas das relações de gênero.

3-  Como você enxerga hoje a atuação das mulheres na pesquisa?

Como ainda muito tímida, especialmente nos campos para além das ciências humanas, em que atuo. Segundo estatísticas da Unesco, apenas 28% d@s pesquisador@s do mundo são mulheres, um dado assustador para a segunda década do século XXI. Estamos, portanto, muito distantes de uma situação de equilíbrio nesta seara. Por isso, apoio e ajudo a divulgar iniciativas que contribuam para uma maior participação das mulheres nas ciências, como é o caso da comemoração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, 11 de fevereiro, para quem ainda não ouviu falar – que eu nem sabia que existia e comecei a divulgar neste ano. Dar visibilidade ao problema é um passo para a conscientização da necessidade de ação voltada para a transformação. A reduzida presença de mulheres nas ciências é, na verdade, um dos motivos pelos quais venho me dedicando ao estudo das ficções especulativas (ficção científica, utopias e distopias). Nestas ficções, muitas vezes, mulheres cientistas figuram de modo a romper com os paradigmas da ciência tradicional, como é o caso do romance He, She and It, de Marge Piercy; e dos contos “The evening and the morning and the night”, de Octavia Butler, e “The man doll”, de Susan Swan. São ficções centradas em mulheres cientistas e veiculadoras de metafóras importantes nas interfaces entre questões de gênero e de ciência, porém ainda pouco traduzidas para o português. Decorre daí o desenvolvimento de projetos de tradução de obras literárias, exatamente para fazermos circular histórias diferentes em seus enredos notavelmente gendrados, às quais venho me dedicando ultimamente. (Caso queiram saber mais sobre os projetos do nosso grupo, visitem www.literaturaeutopia.net.) A intenção é fugirmos dos modelos rígidos, cololonizadores, sexistas e, na maioria das vezes, orientados pelo capitalismo, que ainda imperam nas ciências. Assim, estaremos ajudando na circulação de imagens metafóricas de novas relações entre ciência e gênero; e contribuindo também – modestamente, mas crentes na força das histórias alternativas para pensarmos mundos melhores – para a construção de uma desejada ciência mais humanizada ou, para usar os termos da crítica feminista Sandra Harding, de uma “ciência sucessora”. E ainda sobre a necessária divulgação das desigualdades de gênero no contexto da pesquisa, aproveito para agradecer à Fapeal pela sensibilidade e engajamento que demonstra ao abrir este espaço para divulgação da produção de mulheres pesquisadoras no Estado de Alagoas. Esperemos que outras iniciativas aconteçam em decorrência desta.

4-  Que recado você deixaria para as mulheres no mês que celebra as lutas e conquistas femininas?

Tenho mil respostas para dar aqui, mas o espaço é curto. Então, vamos lá, no âmbito pessoal, como mulher casada, mãe, amiga e empregadora, peço que (re)avaliem constantemente os modos pelos quais estão construindo as relações de gênero ao seu redor, em seu “infinito particular” (como diz Marisa Monte), para evitar a reprodução dos padrões opressores de gênero, classe, raça, entre outras categorias de poder que nos afetam no dia-a-dia. Lembremos sempre, junto com Simone de Beauvoir, que o pessoal é político. Já em relação ao âmbito público, acho crucial darmos continuidade aos enfrentamentos dos preconceitos, opressões e violências  que nos rodeiam diariamente, buscando o florescimento e consolidação de ambientes de sororidade e apoio mútuo. Em extensão aos slogans “Sisterhood is powerful”, dos anos 60 e 70; e “mulheres no circuito integrado, dos anos 1990; gusto de fazer ecoar a ideia mais recentemente expressa pela estudiosa Donna Haraway de pensarmos uma rede de espécies companheiras num feminismo multi-espécies, mais abrangente, pós-humano e ecológico. Em minha opinião, essas lições herdadas do movimento e pensamento feministas são básicas e urgentes. Finalmente, considerando o âmbito da minha própria atuação profissional, meu recado é: leiam mulheres, divulguem suas histórias, escrevam as suas próprias!